domingo, 19 de agosto de 2007

...depois do Ary e do seu Esquadrão da Vida




Ary me revelou outras possibilidades da arte. Depois dele nada mais seria como antes.
Este é um artigo que fala de quem era Ary.

Esquecer nosso passado é qu’eu nunca consegui: lembrando Ary Pára-Raios

Ivany Câmara Neiva [1]

1. BASTIDORES
As leituras, as conversas e os debates desenvolvidos durante o Seminário Teoria e Metodologia em História Cultural [2] remetiam à lembrança do teatro, da crônica, do cotidiano de Ary Pára-Raios. Remeteriam em qualquer época, porque sua vida dialogava com os objetos da História Cultural. E naquele momento, mais ainda, porque desde fevereiro ele não estava mais entre nós. Nós – os amigos, e Brasília – sua cidade, sentíamos sua falta e reconhecíamos sua presença marcante.
Desenhava-se um primeiro vôo sobre a memória de Ary Pára-Raios no cenário de Brasília e se configurava o desafio da relação subjetiva com o objeto. A narradora vivenciava questões discutidas no âmbito da teoria e do método: o pesquisador é uma das condições de seu trabalho.
Por outro lado, a escolha de um personagem e de sua trajetória artística como objeto encontrava respaldo em autores com quem vínhamos dialogando no Seminário: Ginzburg, De Certeau, Maffesoli, Chartier. Escolher Brasília como plano de observação interessava à História Cultural, pois a cidade era vista enquanto locus de construção identitária, representacional e do imaginário.
Elegemos como conduta de pesquisa a história oral, registrando a memória recente a partir de entrevistas com narradores próximos a Ary: Teodoro Freire (Diretor do Centro de Tradições Populares de Sobradinho), Roberto Corrêa (violeiro e pesquisador), Juliana Saenger (produtora cultural e pesquisadora), Thereza Negrão (professora universitária), Maíra Oliveira (atriz, filha e Assistente de Direção de Ary Pára-Raios), Tiana Oliveira (atriz, filha de Ary Pára-Raios) e Aluízio Augusto (animador cultural, antigo integrante do Esquadrão da Vida). Esses contatos reafirmaram o interesse e a viabilidade de ampliar a rede de memória, dando continuidade a esse trabalho, mais tarde.
1. ENTRANDO EM CENA
Ary Pára-Raios [Fig. I], antes Ary José de Oliveira e às vezes Pararraios ou Pára-Rayos (“não importa – os raios não caem no mesmo lugar...”) viveu sessenta e três anos de arte. Quase a metade desse tempo foi vivido em Brasília ou bem perto, e as marcas dessa presença estão nas pessoas e na cidade.
Das conversas de agora, que lembram as passadas e levam a outras, surgem pistas e convites para novas histórias.
2. CENAS
Esquecer nosso passado é qu’eu nunca consegui é o primeiro verso de uma cantoria de diversão recolhida por Roberto Corrêa e Juliana Saenger (Corrêa e Saenger, 1998) na região mineira de Buritis. A curraleira remonta ao ciclo do ouro em Minas Gerais e Goiás, e é “companheira da folia. (...) Tudo é com três: a curraleira é feita em três partes: a primeira chama-se passeio, é aquela que nós vai andando; a segunda chama trocado; a terceira é aquela que vai de um a um fazendo sapateado, chama visita...”[3]
Essa cantoria foi apropriada pela Folia Real [Fig II], espetáculo-celebração levado às ruas de Brasília por Ary Pára-Raios a partir de 2002.
Aqui, colocamos em cena os narradores, nos apropriando das três partes da curraleira: passeio, trocado e visita.
3.1 Passeio
“É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?”
Em 1979, Ary Pára-Raios escreveu o musical Sete Trabalhos de Estive, dirigido por Hugo Rodas. Tratava-se do encontro entre Estive, que sofria de males como “guerrite” e “plasticose aguda”, e o Curupira, que mostra o segredo de sua cura: “o segredo está no sete (...) – sete tarefas que vocês encontrarão – depois de uma vem a outra, logo depois vem outra mais, e aquela que passou outra nova sempre traz”[4].
Também sete foram as perguntas “à obra de Walter Benjamin”, formuladas em 1990 a sete duplas de pesquisadores - brasileiros e alemães - que tinham em comum serem leitores de Benjamin. Coube a Sérgio Rouanet (Rouanet, 1998) responder a esta - “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?”. Com base nos fragmentos reunidos em Trabalho das Passagens [5], Rouanet constrói uma possível resposta de Benjamin: o homem habita uma cidade real e é habitado por uma cidade de sonho.
A trajetória de Ary Pára-Raios em Brasília nos tenta a acrescentar: o homem sonha e constrói cidades que o vão habitando; o homem vai se apropriando da cidade que vai inventando e reinventando. São cidades reais ou invisíveis, mas sempre imaginadas e construídas nas representações de quem as habita.
O paranaense Ary José de Oliveira tinha o sertão e a polis no nome de sua cidade – Sertanópolis – e foi um desses migrantes de muitas viagens, uma delas para Brasília, onde finalmente se radicou, em 1975. Saiu de casa ainda menino e fez de tudo na vida: foi engraxate, datilógrafo, mecânico, pintor de parede, faxineiro, executivo de compra e venda de café, decorador, bancário; ator, diretor de teatro, pensador, dramaturgo, jornalista; trovador, músico, poeta, agente cultural, artista, palhaço[6].
A cidade o habitava, o desafiava. Ele desafiava a cidade e se apropriava de seus espaços, e o grande desafio artístico era situar a figura humana na escala arquitetônica da cidade. Em 2001, quando o Esquadrão da Vida completa vinte e um anos, Ary comentava que um dos alicerces da formação do Esquadrão é a própria cidade, então comparada a um gigantesco palco. “Brasília é horizontal, espaçosa. Sem paredes, com muito verde. Aqui, em cada lugar há palcos que precisam ser ocupados.” (Hilário, 2001)
Anteriormente já dissera que “Nossa técnica se situa entre a tradição do circo e as possibilidades do mundo urbano.” (Paniago, 1998), e via entre essas possibilidades a ocupação lúdica dos lugares, o reconhecimento e a multiplicação do que seriam “lugares de comunicação e sociabilidade” (Mello, 1998 e Maffesoli, 2004[7]). Essa ocupação da rua pelas táticas da guerrilha do bom humor[8] configurava uma estratégia, uma arte de fazer espaços de convivência na cidade (Certeau, 1994)[9].
Identificado com esse grande palco que é a rua de Brasília, Ary Pára-Raios buscou a “ïdentidade”, as identidades moventes desse lugar e de seus habitantes. O trabalho de teatro, desde a escolha dos textos, a linguagem e a estética, o preparo de atores até a busca de patrocínios, a divulgação e a apresentação, passa por esse reconhecimento (e construção) de identidades – “não só o que é, mas o que foi e o que pretende ser”[10]. Ary sabia disso e pensava em Brasília como local privilegiado de atuação e como referência – talvez pensando que “um sutil fio faz todas as cidades parecidas, por demais intrincadas, com fronteiras fragilmente definidas. Quando pensa ter saído de uma delas, reencontra-se o viajante no início da caminhada por sua rua central, a mesma que imaginava ter percorrido vários anos atrás” (Marcondes Filho,1996)[11].
“’É preciso se deixar surpreender, e surpreender sempre”, dizia Ary[12]. Brasília e Ary se surpreendiam um ao outro. E “quanto mais instável e surpreendedor for o espaço, mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da descoberta. (...) A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova história” (Santos, 1999).
Na rua com Ary Pára-Raios: temas, tramas, práticas e representações
Conhecê-lo como flaneur em Brasília e estar na rua com Ary Pára-Raios era pura alegria; participar do antes e do depois era compartilhar a pesquisa, a construção permanente, o compromisso social e político. Observar Ary Pára-Raios na rua era, também, exercitar a práxis da arte e dialogar com a história cultural[13]. A circularidade cultural, o dialogismo, os hibridismos, as ancoragens, influências e trocas recíprocas, as apropriações, as representações, estava tudo ali, pulsante.
A trajetória do seu grupo de teatro Esquadrão da Vida completa vinte e cinco anos em 2004, registrando mais de vinte títulos encenados, além da realização de oficinas de malabarismo e técnicas teatrais e da organização de campanhas, predominantemente voltadas para questões ambientais.
Em todas essas atividades, uma das marcas tem sido a familiaridade com autores e pensadores renomados, convivendo no trabalho cotidiano com a literatura oral e as expressões de arte popular.
Essas apropriações, invenções e releituras no repertório e na expressão compunham uma “dramaturgia do corpo aplicada ao teatro de rua (...), uma linguagem dramatúrgica própria, identificada com o povo da sua cidade” (Pára-Raios, 1999).
Ao longo de sua trajetória, o teatro de Ary Pára-Raios esteve sempre em movimento. Tanto no espaço como na expressão, houve permanências, rupturas e surpresas: “Os espetáculos são dinâmicos, alegres, movimentados, acrobáticos. Aceitam e reciclam os dados da informação eletrônica sem sacrifício para as expressões do povo. (...) O figurino, no íntimo, ainda é o mesmo: o do palhaço. Mas suas roupas se adaptaram aos avanços da indústria têxtil; sua dramaturgia tornou-se cada vez mais emergente, sondando e dando resultado à rua.” (Pára-Raios, 1999) [Fig III]
A crítica social e política estava presente em seu discurso no teatro, no jornal, no cotidiano: “Nunca fez concessões” (Oliveira, 2003), especialmente no trato com as esferas políticas e da mídia, quando exercia suas intervenções como “crítico contumaz da política cultural do Distrito Federal e do Brasil” e sua militância como “árduo defensor dos direitos humanos e do meio ambiente.” (Hilário, 2003)
A proposta era levar o teatro às ruas, e isso foi realizado não só em Brasília e demais cidades do Distrito Federal, como em vários Estados brasileiros. A “ópera-cordel” Na Rua com Romeu e Julieta e O Bicho Homem e Outros Bichos, por exemplo, estavam na bagagem da Coluna Jeca, caravana artística realizada em 1997 e 1998, passando por mais de cinqüenta cidades, em Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A proposta da Coluna era essencialmente a troca, o diálogo: “Os espetáculos e as oficinas desenvolvidas em muitos anos de rua no Distrito Federal (...) são as moedas que os atores mambembes do teatro brasiliense levam para trocar pelos folguedos, catiras, fandangos, modas de viola, reisados, cavalhadas, festas do divino e espetáculos malabarísticos dos circos que (ainda) percorrem as cidades do interior (...). É jeca como os personagens de Lobato, que mostra o caipira que habita todos nós. Lembra também Mário de Andrade em seu O Turista Aprendiz.(...) e a Coluna Prestes que, na década de vinte, percorreu milhares de quilômetros levando revolução à gente simples do interior. O que os jecas do Esquadrão da Vida levam é arte.” (Correio Braziliense, 2003)
Um dos produtos desse intercâmbio é a Folia Real: “A peça é um musical inspirado nas folias brasileiras. Forjada em escolas como a comedia dell’arte, a montagem tem uma visão lúdica e política do teatro. (...) Como todas as montagens do Esquadrão, Folia Real traz o imaginário popular para onde o cotidiano da cidade realmente acontece: calçadas, praças, esquinas.” (Hilário, 2003)
Os espetáculos Folia Real, Na Rua com Romeu e Julieta, e mais tarde Romances, são emblemáticos desse diálogo do trabalho de Ary com a tradição dos trovadores, dos saltimbancos e da commedia dell´arte, e de sua fusão com a tradição circense, dos folguedos, das danças e encenações populares.
Essa fusão se manifesta, por exemplo, no tipo particular de comunicação que se estabelece na praça pública[14], nas apresentações de rua, e na utilização da ironia como equipamento retórico. Ary utilizava o riso, a brincadeira e a ironia não só na festa de rua e no teatro, mas no cotidiano de vida e trabalho.
Festa, trabalho e pão[15] estavam presentes no discurso, nos temas, nas tramas, práticas e representações de Ary Pára-Raios.
3.2 Trocado
Sobressaltos: encontros de Mestres
“Daniel, adivinha sobre quem estamos conversando?
”A resposta de Daniel Briand[16] vem pela linguagem universal do gesto, acenando para uma estrela invisível.
A conversa com o violeiro Roberto Corrêa e a produtora cultural Juliana Saenger era sobre Ary Pára-Raios, sobre o diálogo entre mestres, sobre trocas, amizade e saudade: “parece que é onde a arte nasce.”
No espetáculo Brasis, de 1984, o violeiro Roberto dizia ao ator: “Ary, você pode se expressar pela música!” E Ary convenceu Roberto a cantar no palco, o que nunca acontecera antes. Dezessete anos mais tarde, Roberto conseguiu que Ary fizesse o espetáculo solo Romances – um fabulário do Brasil, cantando e tocando violão, viola e rabeca. Em 2002, dirigindo Extremosa Rosa, o ator Ary dizia ao violeiro: “Roberto, você já é ator!”
A idéia de fazer Romances surgiu de uma conversa sobre os vinte anos de Brasis, a se completarem em 2004, e da leitura de um livro de Romildo Santana, contando que as modas de viola são herança dos romances medievais. Roberto pensou: “por que não fazer um espetáculo com um trovador? Ary é um trovador!”
Foi Ary o único diretor de Roberto. Isso aconteceu em Extremosa Rosa – “uma síntese do meu trabalho – essência do lugar de onde eu sou, de onde eu vivo; a busca de uma sonoridade do sertão – desse meu sertão, que é também Brasília”, lembra Roberto. Juliana observa: “Ary explorava o que Roberto já tinha, do gestual do caipira. (...) Jogou luz ao que Roberto já tinha, e iluminou o que Guimarães Rosa mostrava: o sertão dentro da gente; você não sai do seu lugar e é universal.”
Na apresentação de Extremosa Rosa no Teatro Nacional, dia 10 de abril de 2003, foi acrescentada uma música à programação: Sobressalto, composta por Roberto Corrêa em homenagem a Ary Pára-Raios. Primeiro, chamei de Palhaçoari, nome que parecia de um pássaro, saltitando e voando distante. Mas aí, conversando com a Ju, falando dos sobressaltos que senti durante a composição, vimos que o nome era esse, que falava também dos saltos do Ary. E ficou Sobressalto. Quem sabe o nome ainda volta, e fica Palhaçoari – o sobressalto?”
3.3 Visita
Está com ele, está com Deus
Ary tinha amigos por toda parte e era um homem do dia e da noite. Boêmio atípico, não costumava beber, mas circulava pelos bares e cafés tendo como parceiros muitos artistas, professores, jornalistas da cidade. Sua sintonia com a música popular brasileira o aproximava das cantorias da noite[17], e nesse grupo se incluía Thereza.
Foi com ela que Ary foi buscar, em Sobradinho, um Boi que Seu Teodoro Freire lhe dera. Lembrando esse dia, Thereza destaca uma característica de Ary: foi reconhecido por aqueles cujo reconhecimento lhe importava. “Foram flores em vida” – aplausos, solidariedade e presentes preciosos como o Boi de Teodoro, a viola trazida pelo violeiro Roberto Corrêa, do Paraná, e mais tarde a rabeca; o estandarte do Esquadrão, feita pela artista Minie Sardinha; o primeiro disco de Elomar, trazido das barrancas do rio Gavião (depois, em quantidades não tão comerciais, comercializado com exclusividade no Jegue Elétrico); os trabalhos únicos de Wagner Hermuche, Rômulo Andrade, Renato Matos. Em dezembro de 2002, no pouso da Folia Real da 310 Sul, ganhou do violeiro Rui, em ritual acompanhado pela vizinhança, a estola de capitão da Folia da Paz[18]. Essa estola, e também o estandarte trazido para o encontro, tinham significado especial: foram bordados por Ângela, uma das irmãs Dumond, de Pirapora. São “condecorações” alternativas, para quem dizia aos quatro ventos: “Não temos uma companhia preocupada com prêmios Shell ou Esso; nosso prêmio é ter feito nos últimos quatro anos quase 700 espetáculos para um público de 250 a 300 mil pessoas.” (Paniago, 1998)
Por que, presentes tão especiais? Certamente, porque Ary era especial. Além disso, como estava em sintonia com tudo o que era cultura, preservava e partilhava esses bens: “Está com ele, está com Deus”.
O Piloto, o Pai da Cultura
Na despedida de Ary Pára-Raios, uma presença chamava atenção: nos seus oitenta e quatro anos, tendo nas mãos o chapéu branco com as fitas vermelho e preto do Flamengo, lá estava Teodoro Freire – o Seu Teodoro, que desde 1963 dirige o Centro de Tradições Populares de Sobradinho, ou o Bumba-meu-Boi de Sobradinho.
Roberto Corrêa o ouviu dizer: “Planaltina é a mãe da arte; Ary é o pai”.
Teodoro conta: “Muitas vezes me lembro de encontrar com ele – aquela espontaneidade, aquela persistência – e ele me pedia para conversar sobre o Boi, para contar de novo as histórias do Boi. Dia 25 de janeiro completou 40 anos – agora, se acabar, muitas pessoas vão se lembrar que um dia esse Boi existiu. Mas não foi fácil a batalha. E o Ary perguntava: E aí, Teodoro, como vai ser? Eu dizia: Não sei, só sei que o Boi sai. E no dia, saía. Ary era uma espécie de incentivo. Quando eu estava na pior, procurava o Ary e ele dizia: vai por essa estrada aqui, que vai dar certo. Ele animava, aconselhava, ia chamando todo mundo – ele não ia convidando, ia intimando para salvar o Boi. Um dia, conseguimos marcar uma audiência com o Chefe do Gabinete do Governo do Distrito Federal. Eu fui de terno, o Ary foi de macacão. Não deixaram ele subir, mas ele não ficou aborrecido e disse que eu é que tinha mesmo que subir, que eu sabia tudo e contasse tudo. (...) Ele estava sempre nos levando para o canal certo. Era uma espécie de piloto nosso. Ele dizia: vai, Teodoro, mostrar o Boi em tal lugar, oferecer lá para o Boi brincar. Continuava a falta de dinheiro, mas o Boi foi ficando conhecido, estava sempre em evidência por isso que o Ary aconselhava. Agora estamos no calendário oficial de festas da cidade, e está definido que podemos ficar no terreno enquanto o Boi existir. (...) A vantagem minha era essa, de eu conhecer ele. E ele tinha amigo em todo lugar. Ele falava que não precisava fazer Universidade para fazer cultura, mas o que ele queria dizer é a cultura popular já é da Universidade, já está junto da Universidade.
(...) O relacionamento de Ary foi em toda parte: na política, na cultura, na ciência. A ciência dele na cultura é o que era mais importante: ele ensinar, ele transmitir o saber dele cultural para a pessoa. Nisso é que ele deixou a marca dele em todo mundo. Ele fazia aquele teatro de rua e fazia a pessoa gostar daquilo que nunca tinha visto. Fazia a pessoa parar pra ver e depois procurar onde era de novo pra ir ver. Demonstrava que a pessoa tinha assimilado aquilo que ele estava fazendo. O Ary era um homem assim desse jeito. (...) Com aquele violão dele, o que é que ele não tocava? Se ele tocava até o hino do Flamengo quando eu pedia... Ele tocava Villa-Lobos, Bach, rock – música clássica, música popular. (...) É esse o caminho. Tudo o que a gente puder fazer e se lembrar do Ary, ainda é pouco pelo que ele fez pelas manifestações culturais. A imprensa, os políticos, os artistas precisam se juntar para fazer uma homenagem do nível dele. E eu quero participar com o grupo, com os grupos. Mas não quero que seja em teatro – quero na rua, como ele gostava. Quero brincar o Boi no meio da praça, daquela forma de ele brincar no meio da praça, sair pulando, dando calhambota. Esse é o caminho.”
3. NO CAMINHO
Que bom, chegou o Esquadrão
Assim começa uma das músicas que o Esquadrão da Vida canta pelas quadras e praças, anunciando sua chegada e convidando as pessoas para o espetáculo. O chamado continua. Mesmo sem ter interrompido suas apresentações, o Grupo vive agora um momento de reflexão sobre seus caminhos sem seu criador Ary Pára-Raios.
Quando se fala em “Grupo”, está se pensando na formação básica, atual, do Esquadrão. Ao longo dos seus vinte e quatro anos, várias foram as composições, tanto em termos de quantidade de atores como de suas características. Embora Ary pretendesse formar um grupo de relativa permanência e que tivesse o teatro como opção preferencial, muitos jovens passaram pelo Esquadrão, atuaram por um período e seguiram atividades diferentes.
Seguindo a trajetória de alguns deles, observamos que as marcas do tempo do Esquadrão estão presentes, de alguma forma, no estilo de vida, no desempenho profissional, na visão de mundo: “Percorro pistas deixadas por ele na construção do meu próprio sonho”, conta Aluízio, lembrando os tempos de ator com Ary.
“Parece que a missão dele no mundo era provocar, ensinar pelo desafio, mostrar possibilidades, juntar disciplina e invenção”, lembra Maíra Oliveira, sua filha e atual diretora do Esquadrão da Vida.
Dos sete filhos de Ary, Maíra e Tiana desde cedo o acompanharam no Esquadrão da Vida. Ambas são atrizes e tiveram no pai, seu mestre.
Longe de Brasília por uns tempos, Tiana continua vivenciando os ensinamentos de Ary: “O preparo rigoroso que meu pai exigia dos atores não era gratuito; ele sabia o que estava fazendo. Exigente vinha junto de competente. Ele deixou cada vez mais questionamentos sobre a vida, o trabalho, o afeto.”
Maíra, tantas vezes Julieta na rua, foi Assistente de Direção do Esquadrão da Vida e vem assumindo a direção, desde o progressivo afastamento de Ary: “O Esquadrão vai continuar, está continuando. É difícil, a saudade é muita, a solidão. (...) Vai ser diferente, já estava sendo diferente desde que comecei a ajudar o Pai. Ele observava e apoiava, dizendo que, se eu estava naquele momento na direção, passava a ser daquele jeito. E o fato de eu ser mais nova, e de ser mulher, e de ter tido experiências de vida diferentes das dele, tudo isso modifica o Esquadrão. Mas tem um conceito, uma essência que eu entendo e que é para sempre. O respeito ao outro, o compromisso social, a alegria. E também em termos estéticos, o Esquadrão tem sua cara, e o preparo, a pesquisa, estão implícitos na continuação do trabalho.”
Maíra reconhece que “o momento é de renovação e de estreitamento dos laços. Aliás, a continuação e a renovação são possíveis exatamente a partir desse estreitamento de laços criados em torno dele e que permeiam nossa vida.”
Que bom, chegou o Esquadrão!
5. O ESPETÁCULO DEVE CONTINUAR
Neste primeiro vôo sobre a memória de Ary Pára-Raios, a mensagem final pretende reforçar o círculo e religar pontas do tempo. O título Esquecer nosso passado é qu’eu nunca consegui remete à atenção permanente de Ary quanto à pesquisa sobre fontes da cultura brasileira e à atualização das linguagens de seu trabalho. Por outro lado, a frase lembra o conceito de História de Walter Benjamin, ao vincular passado, presente e futuro: “O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (Benjamin, 1996). Ary fazia isso, e nós podemos reconhecer e renovar essa memória, no cotidiano do espetáculo da rua e da academia.
Aliás, a associação entre a cena teatral e a cena da vida é recorrente na literatura e também em alguns discursos científicos. Por exemplo, dizia Maffesoli: “É sempre dos bastidores da vida que a teoria olha o espetáculo social, ao mesmo tempo em que se esforça por soprar os papéis” (Maffesoli, 1978)
Quanto ao espetáculo da vida em Brasília, vemos que Ary Pára-Raios está presente na construção identitária desta cidade, e faz isso pela arte - “supressão máxima da cotidianidade” (Heller, 1989). Ary fazia e nos leva a fazer esse circuito de “sair da vida cotidiana e retornar a ela de forma modificada” (Falcão, 1982), construindo o brilho possível do cotidiano.
Esse é o caminho, como disse Seu Teodoro: que venham outros vôos, que o espetáculo da vida e o espetáculo do Esquadrão da Vida continuem !

BIBLIOGRAFIA
ALVES, Patrícia Ferreira. O besouro da cultura: as continuidades e descontinuidades dos processos culturais nos espaços da 508 Sul. Brasília: Universidade Católica de Brasília, 2000. (Trabalho de conclusão do Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo).
BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Edusp, 1993.
BARCELLOS, Jalusa. CPC – uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
BENJAMIN, Walter. O Conceito de História. In: Magia e Técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BOTELHO, Cléria (org.) Um passeio com Clio. Brasília: Paralelo 15, 2002.
BULIK, Linda. Comunicação e teatro: por uma semiótica do Odin Teatret. São Paulo: Arte & Ciência, 2001.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. São Paulo: Edusp, 1997.
CAZARRÉ, Lourenço. Ary espalha Raios. Salvem o Esquadrão da Vida! In: UnB Revista. Universidade de Brasília. ano III, nº 8, jul/ago/set/out 2003.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
__________. Cultura escrita – literatura e história. São Paulo: Artmed, 2001.
CORRÊA, Roberto e SAENGER, Juliana. Sertão Ponteado – memórias musicais do Entorno do DF. Brasília: ViolaCorrea, 1998. CD e encarte.
CRUCIANI, Fabrizio e FALLETI, Clélia. Teatro de Rua. São Paulo: Hucitec, 1999.
DUARTE, Regina Horta. Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
FALCÃO, M.C. e NETTO, J.P. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1982.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e terra, 1989.
LACERDA, Nara. Palavras na Parede (vídeo-documentário). Brasília: Universidade Católica de Brasília, 2003 (Trabalho de conclusão do Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo).
MAFFESOLI, Michel. A Lógica da Dominação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
__________. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
__________. Notas sobre a pós-modernidade – o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântida, 2004.
__________.O tempo das tribos – o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Hucitec / Unesp, 1998.
MARCONDES FILHO, Ciro (coord.). Pensar – pulsar: cultura comunicacional, tecnologias, velocidade. São Paulo: USP /ECA /NTC, 1996.
MELLO, Thereza Negrão. Se esta quadra fosse minha. In: MEDINA, Cremilda (org.). Narrativas a céu aberto: modos de ver e viver Brasília. Brasília: Editora UnB, 1998.
NEIVA, Ivany C., TORRES, Cristina, LACERDA, Nara. Festa, trabalho e pão. In: IV Encontro Nacional de História Oral - História e Tradição Oral. Goiânia, ABHO: maio de 2004.
__________. Trilhas de educação ambiental: cirandas e redes no Distrito Federal. In: II Congresso Mundial de Educação Ambiental/ 2Weec. Rio de Janeiro, Fiocruz: setembro de 2004.
PÁRA-RAIOS, Ary. Quadrão. Filipeta. Brasília, março 1996.
__________. Esquadrão da Vida: 23 anos fazendo palhaçada. In: VILLAR, Fernando Pinheiro e CARVALHO, Eliezer F. Histórias do Teatro Brasiliense. Brasília: UnB, IdA, 2004.
__________. O Bicho Homem e Outros Bichos – roteiro de teatro. Encarte. Brasília: Sociedade Cultural Esquadrão da Vida, 1999.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000
ROUANET, Sérgio Paulo. “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?”. In Revista USP. Dossiê Walter Benjamin. São Paulo, set/out./nov. 1992. n 15.
SAN MIGUEL, Petro L. Visiones híbridas del Caribe: entre la mirada imperial y las resistencias de los subalternos. In: Revista Brasileira dos Caribes. Vol.I nº 2 pg 61. Goiânia / Brasília, CECAB, 2000.
VILLAR, Fernando P. e CARVALHO, Eliezer F., orgs. Histórias do teatro brasiliense. Brasília, UnB, IdA, Artes Cênicas, 2004.

REPORTAGENS
ARAÚJO JR., Newton. No coração do Brasil. Correio Braziliense, 12.01.1997.
BELUCO, Marcelo. Guerrilha do Bom Humor. Jornal de Brasília, 30.01.1999.
CATALÃO, TT. A tribo, a rua, o palhaço. Correio Braziliense, 14.02.2003.
Correio Brasiliense. Nossos Brasis. 11.11.1984.
Corrreio Braziliense. Saltimbanco Pára-Raios. 13.02.2003.
FREITAS,Conceição. A tristeza do saltimbanco. Correio Braziliense, 28.06.2002.
HILÁRIO, Rodrigo. O palco é na rua. Correio Braziliense, 05.05.2001.
____________. Folias brasileiras. Correio Braziliense, janeiro 2003.
JOBIM, Tânia. Esquadrão da Vida festeja 16 anos – Jornal de Brasília, 30.12.1995.
MORETZOHN ,Carmen. Tempos de Inquietação. Jornal de Brasília, 02.06.1999.
MUNIZ, Alethea. Cérebros em busca de sorrisos . Correio Braziliense, 31.01.1999.
OLIVEIRA, Maíra. Entrevista ao Correio Braziliense, 29.01.2003.
PANIAGO, Paulo. Guerrilheiros rumo ao Sul. Correio Braziliense, 10.01.1998.
TAHAN, Fabiana. Era uma vez... Correio Braziliense, 15.11.2000.
Notas
[1] Ivany Câmara Neiva é socióloga e fotógrafa. É professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília, onde participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Imagem e do Núcleo de Fotografia Captura. Cursa o Doutorado em História Cultural da Universidade de Brasília. É amiga de Ary Pára-Raios desde os anos setenta.
[2] Realizado no primeiro semestre de 2003, na Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Ministrado pelas professoras Thereza Negrão e Márcia Kuyumjian.
[3] Depoimento de Roselverte Antônio Pires (Seu Rosa), de Buritis, citado no encarte de Sertão Ponteado.
[4] Ary Pára-Raios. Curupira – diálogo entre Estive e Curupira. Canção da peça Os Sete Trabalhos de Estive. Brasília, 1979.
[5] Há uma seleção desses fragmentos, traduzidos por Sônia Campaner Miguel Ferrari, nos Cadernos de Filosofia Alemã 3, publicado pelo Departamento de Filosofia da USP em 1997.
[6] Essas profissões e atividades foram registradas a partir de entrevistas dadas por Ary e conversas com seus amigos. Quando era interpelado para se auto-definir, privilegiava o ofício de palhaço e a condição de trabalhador da arte e agente cultural – sempre proletário. Até quando sentia dor, resistia às recomendações e tratamentos, pois “proletário não fica doente, proletário trabalha – ainda mais quando é artista.”
[7] “O lugar se torna laço” (“lieu devient lien”) – a agregação em torno de um espaço é dado básico de toda forma de socialidade.
[8] Nome de uma das peças do Esquadrão da Vida (1980/81), extensivo a outras atividades de rua do Grupo.
[9] Michel de Certeau, ao identificar práticas de espaço entre as artes de fazer e inventar o cotidiano, diferencia os conceitos de lugar e de espaço. Espaço seria um “lugar praticado”.
[10] A questão é discutida por vários autores. Interessa-nos, aqui, a discussão de seu caráter plural, e, portanto, das várias faces identitárias que indivíduos e grupos podem ter. Como referência, por exemplo:
SAN MIGUEL, 2000.
[11] Nesse texto, o autor lembra que “ninguém melhor do que Ítalo Calvino (1972) em seu livro As Cidades Invisíveis, (...) permite ver as cidades como redes pulsantes nas quais se entrecruzam vivências, discursos, corpos, pensamentos, múltiplas histórias”.
[12] Dizia isso, por exemplo, como conselho a sua filha e assistente de direção, Maíra Oliveira.
[13] Como registrado anteriormente, um “guia teórico-metodológico” para acompanhar Ary na rua poderiam ser autores ligados à História Oral como Roger Chartier, Peter Burke, Michel de Certeau, Bakhtin, Ginzburg, Nestor Canclini, Luís da Câmara Cascudo.
[14] Estudado por Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento.
[15] Referência à canção Viramundo, de Gilberto Gil, e a palavras de ordem freqüentemente utilizadas em movimentos sociais.
[16] Proprietário do café e espaço cultural Daniel Briand Pâtissier & Chocolatier, em Brasília.
[17] Inclusive no efêmero espaço do Odara, que no final dos anos setenta funcionou na 405 Sul, com fachada decorada pelo artista Ignácio da Glória e onde aconteciam atividades culturais diversificadas, do cinema aos saraus e à cantoria.
[18] Grupo de folia criado em Brasília.

Apresentação

Essa coluna é a documentação do trabalho que desenvolvo com Circo, Teatro, Bonecos, Brincadeiras e Brinquedos, fragmentos dos universos que interfiro, misturo e transformo. Fragmentos de ciências, artes, filosofias e ofícios que compõem a linguagem do trabalho.

Desta forma, aqui no"blog" - que daqui por diante vou chamar somente de coluna - vou registrar e compartilhar impressões, fotos, formas e um montão de coisas mais.